Cagica Rapaz, Libero e Directo: O Belenenses

"O serviço militar levara-me para o Porto, mas era meu desejo voltar para a região de Lisboa. A CUF não dava mostras de poder conseguir a minha transferência para uma unidade próxima do Barreiro, e Meirim manifestou o desejo de contar comigo no Belenenses onde, segundo julgava, havia gente influente no campo militar.

Estamos no Verão de 1970 e Meirim já incendiara as hostes azuis ao deixar no ar a promessa de ser campeão. Eram as bombásticas declarações do treinador, sua foi a responsabilidade…

Contrariamente às expectativas, só em Janeiro de 1971 consegui vir para perto de Lisboa, para o Campo de Tiro da Serra da Carregueira. A época ia a mais de meio, a nau azul afundava-se, Meirim foi despedido e, como consequência directa e lamentável, alguns dos jogadores mais próximos do treinador foram proscritos, apontados a dedo, colocados à margem.

Eu, que mal acabara de chegar, fui um deles, sentindo imediatamente que constava da lista negra. O nosso “crime” foi, suponho, termos sido trazidos por Meirim, não vejo outra razão nem alguém jamais se dignou dar a menor explicação.

Embora tal atitude fosse injusta e absurda, teria sido possível abordar a questão com um mínimo de dignidade, o que não sucedeu.

Apesar de eu ter um contrato de seis meses (que estava em curso) e outro de três anos, teria entendido que o clube desejasse alterar a sua posição. Estava no seu direito e, civilizadamente, poderiam ter-me exposto o assunto. Através de diálogo, teríamos certamente chegado a um entendimento, mas, em vez disso, o que aconteceu foi terem-me ostensivamente colocado na situação de indesejável, sem uma palavra, sem uma observação, sem a menor crítica ou acusação.

Até que o treinador-adjunto Mourinho Félix deixou escapar a assunção de que os dados estavam viciados, quando o surpreendi a fazer a convocatória antes do (normalmente determinante) treino de conjunto da 5ª feira. Manifestei-lhe a minha estranheza perante tal procedimento que provava, de forma inegável, que tudo era decidido previamente, de nada servindo o esforço ou o valor de alguns elementos, condenados que estavam, sem apelo, ao afastamento. Perguntei-lhe até se valia a pena ir treinar, sabendo de antemão que não seria convocado. A resposta de Mourinho Félix foi de antologia: - “O azar foi tu teres chegado atrasado, senão não tinhas visto e nunca saberias de nada”.

Azar para quem? Para mim não, porque já estava julgado e condenado sem conhecer a acusação e sem ser ouvido. Azar foi para ele que se viu descoberto e não teve arte nem reflexos para arranjar sequer uma desculpa, uma finta discursiva para camuflar a prática suspeita.

Recordo-me de ainda ter visto o jovem Mourinho defender as balizas do Vitória no velho e pelado campo dos Arcos, recebendo o testemunho do veterano Batista. Mais tarde, admirei o seu profissionalismo ao serviço do Belenenses, como jogador sério e de certa valia. Por isso tenho certa dificuldade em compreender as atitudes do mesmo Mourinho Félix nas funções de treinador-adjunto.

Curiosamente, por acaso, cruzámo-nos, há pouco tempo, em Setúbal. Ele não me viu, eu não o chamei. Estamos trinta anos mais velhos, e não pude deixar de reflectir sobre tudo isto, sobre a verdadeira importância destes incidentes nas nossas vidas. Que motivações o terão levado a agir assim? Que balanço, em consciência, terá feito? Terá achado que actuou com isenção e justiça? Terá ficado em paz, admitindo ter defendido o superior interesse do Belenenses? Que palavras teríamos trocado se tivéssemos agora chegado à fala, ao fim de mais de trinta anos, no limiar da velhice? Até que ponto será útil recordar o passado? Mas, por outro lado, por que razão haveria de silenciar comportamentos desta natureza?

Embora a fase das ilusões sobre o futebol já tivesse passado havia muito, tive pena porque continuava a ter simpatia pelo clube e tencionava acabar ali, mais tarde, a minha carreira. Assim, abandonei cedo de mais, profundamente desiludido.

Nesse Verão de 71, pus a acção, continuei no serviço militar e aguardei. Três anos depois, o Belenenses pagava-me o que o tribunal decidiu…"
Texto retirado do Blog BOA NOITE, Ó MESTRE! (IN MEMORIAM ANTÓNIO CAGICA RAPAZ)

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