O futebol entrou muito cedo na minha vida,
através das narrativas do meu pai que vivia com um pé no presente (Belenenses) e o outro preso à nostalgia do passado, o seu Pátria Futebol Clube, uma das quatro equipas que havia em Sesimbra.
Apesar das desesperadas tentativas da minha tia Lucinda em me conquistar para o Benfica, eu fui azul desde a primeira hora.
Mas toda a minha infância foi embalada pela evocação das epopeias do Pátria. Estávamos no início dos anos 50, não havia televisão e, enquanto o mar rugia, ao longe, eu adormecia com a cabeça cheia de histórias autênticas em que a lealdade, a amizade, a camaradagem e o empenhamento eram valores seguros. Era o tempo ingénuo e heróico das balizas às costas, do calção pelo joelho, da cabeça amarrada com um lenço e da bola com atilhos. E eu conhecia tão bem os nomes do Matateu, do Di Pace, do Sério, do Feliciano como os do Zé da Faca, do Patachão, do Mira, do Policarpo, do Barlona, do Anazário, dos irmãos Casa-Pia ou do Pompílio.
Mas nem tudo era belo e nobre nessas lutas entre irmãos da mesma terra e, de uma lamentável guerra fraterna, resultou a morte do Pátria, apesar da resistência corajosa de meia dúzia de homens dignos. Mas, como quem com ferro mata, com ferro morre, os outros três acabaram por desaparecer igualmente diluídos na fusão que deu origem ao Desportivo de Sesimbra. E se para o meu pai o futebol em Sesimbra morreu com o Pátria, para mim despontou com o Desportivo. Mas o Pátria ficou bem ancorado no cantinho mais romântico da minha alma desportiva.
O futebol começou a ser vivido por mim em três frentes, com as jogatanas da nossa rapaziada, a assistência a treinos e jogos do Desportivo e o acompanhamento, à distância, da carreira do meu Belenenses.
De vez em quando, o meu pai levava-me a ver jogos, em Lisboa, em Setúbal e no Barreiro.
O Belenenses e as suas estrelas eram outra dimensão, quase irreais, enquanto que os jogadores do Desportivo passavam à minha porta, a caminho dos treinos, o Ilídio, o Rogério, o Manel Santana, o Izidro, o Zé Filipe, o Barlona, o Zé Broa, o Jesus, o Zacarias…
Eu não perdia um treino, ávido de ver de perto aqueles ídolos reais, concretos. Quando ia para a escola, cruzava-me com o Manel Santana que, a passos largos, de bota de borracha de cano curto e fato de ganga azul, ia almoçar, para depois ir trabalhar na fábrica de gelo do Chanoca que alimentava a lota.
Na escola Conde de Ferreira, no livro de leitura, eu contemplava as fotografias dos recortes de jornais que o meu pai comprava. O barulho das botas de traves ainda estava nos meus ouvidos, o cheiro a sebo das botas e das bolas misturava-se com o perfume dos eucaliptos que rodeavam o campo do Desportivo.
Metidos no livro de leitura, estavam jogadores de um outro universo, ídolos longínquos, enquanto o Izidro estava ali, a dois passos, com os outros mecânicos, na oficina do Brandão, o Palhete safava machuchas, à rabeça, em frente do Hotel Espadarte, ao lado do mar.
Foi a idade da paixão, das ilusões e dos sonhos, do deslumbramento ingénuo, a aprendizagem de valores que me ficaram para a vida…"