Uma crónica sobre o Matateu e outros pretos que eu conheci

(...) O Matateu, por certo, não devia querer saber dos encantos de Sintra, nem dos seus misteriosos e densos nevoeiros, apenas saber da bola que, manifestamente, lhe faltava, por onde andaria ela ? Pediu por instinto,
Uma cerveja e uma queijada.
Soube, mais tarde, que, nesse mesmo dia, o meu tio Armando chorara, por saber que o Matateu decidira trair o Belenenses e ir para o Atlético (...)

(...) O Matateu era o único preto rico que eu conhecia. Tinha uma mulher branca, cor de leite, como se tivesse escolhido, entre todas as pretendentes, a mais branca de todas as mulheres. As minhas vizinhas não achavam bem.
É só pelo dinheiro que aquela mulher anda com aquele preto.
Mas os meus vizinhos, que eram do Belenenses, condescendiam. Não era um preto, era o Matateu. O goleador, o ídolo azul. E, no entanto, quem o via, assim meio atarracado, sem pescoço, pernas arqueadas, não daria meio tostão furado por ele. Mas era fantástico, o Matateu. Os músculos das pernas eram de aço e o chuto saía forte e preciso. Sem hipóteses!, confirmavam os radialistas de serviço .
Às vezes, o Matateu descia triste, à cabina, para o intervalo. Ainda não tinha marcado golo e sentia, com isso, uma amargura parecida com a daquele dia em que África tinha ficado a perder de vista. Piscava o olho ao João Silva, histórico massagista do Belenenses, pedia ao mister para ir à casa de banho. Atrás da sanita, fresquinhas e apetitosas, lá estavam as suas cervejinhas. Bebia todas de um gole, dava um estalo com a lingua por cada garrafa vazia, arrotava e saía, com mais desejo de golo que de mulher.
Quando o jogo lhe corria bem, não ia para casa deitar-se com a sua mulher branca, mais branca que as outras. Metia-se no carro vistoso e caro, saía na noite, á procura de mulheres da vida, que o animavam e o deixavam beber sem chatices, até de manhã.
Vai acabar mal, noticiavam os chefes de família que com ele davam, perdido de bêbado, amparado a mulheres sem vergonha de escândalos. A camisa descosida, um trapo pendurado, que fora, nos melhores tempos, uma gravata irrepreensível comprada para o dia de anos, na célebre Casa Africana... (...)


(...) Nasci na Travessa da memória. 54. Dezembro. Domingo.
O  meu avô pouco dado a sinais divinos, achou, porém, que não poderia ter sido por acaso que eu tivesse dado o primeiro sinal de vida às 15 e 20, precisamente no minuto em que o Matateu marcava um esplêndido golo no campo do Barreirense. No dia seguinte levantou-se, fez a barba, vestiu o seu melhor fato, a gravata azul, pôs o chapéu, saiu porta fora, não disse nada lá em casa, e fez-me sócio do Belenenses (...)


"Salão Portugal" - Novos contos da velha Lisboa da autoria de Vítor Serpa

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