"No Belenenses, gente que se sumiu, mas que nunca se assumiu na explicação impossível de uma desvairada carrada de pernas de pau do Brasil, tem o desplante de dizer mal da gestão alheia..."
EM miúdo, ia pela mão de um dos meus tios ver todos os jogos do Belenenses ao Restelo.
Um quarto de hora antes das três da tarde, de cada domingo, fizesse frio ou calor, chuva ou sol, via o meu tio Armando e o meu primo Hélder ao fundo da rua.
Descia as escadas a correr e às três em ponto estava sentado no mesmo lugar de sempre, na bancada nascente, esperando milagres do Matateu.
Os anos foram passando, a bancada nascente (e não só) foi perdendo público, o Belenenses foi perdendo dimensão, eu fui perdendo ilusões, mas apesar de tudo ir mudando, uma coisa sempre se manteve: a incapacidade do Belenenses ser reconhecido aos homens que sempre lhe quiseram bem, alguns, mesmo, durante uma vida, nunca esperando nada, a não ser esse simples e merecido reconhecimento dos seus consócios.
A típica ingratidão do Belenenses em relação àqueles que dele mais gostaram e que por ele mais fizeram sempre foi transversal.
Varreu tudo e todos de forma igual, ao mesmo tempo que ia cumprindo a tentação de um desafio permanente do inexplicável desejo de ser grande como os maiores, à custa de aventureiros e de oportunistas.
O meu pai sofria com isso.
Era um daqueles a quem o clube se limitara ao reconhecimento institucional do papel passado na honra e no mérito, mas que nunca verdadeiramente o estimara.
O mesmo sucedia com muitos outros.
Muitos que já morreram e alguns mais (já poucos) que sobrevivem na mesma angústia e desesperança, vendo o Belenenses, por vezes, entregue a caricaturas de dirigentes, que não têm consciência de que um clube, sobretudo um clube com história, deve preservar a sua personalidade e o seu carácter, para que não lhe matem a alma.
Sempre fui bem menos idealista que meu pai.
E nunca consegui ter, como ele sempre teve, uma paixão tão pura e tão inocente pelas coisas que verdadeiramente amava.
Por isso, sempre mantive distância.
Por dever de ofício, sim, mas também por convicção pessoal.
Até mesmo quando o meu amigo de infância, Cabral Ferreira, assumiu a presidência do clube.
Outro que tal, e que nunca me pediria uma linha que fosse, para uma frase, ou um recado. Um caso invulgar de honestidade intelectual e grandeza de carácter, logo dois dos maiores pecados na desenfreada e desvirtuada vida de hoje.
É, pois, à distância que vejo, não impassível, essa sofrida e lenta agonia do Belenenses, onde gente que se sumiu, mas nunca se assumiu na explicação impossível de uma desvairada carrada de pernas de pau do Brasil, tem o desplante e a desvergonha de vir falar dos supostos males da gestão alheia.
Não, não tem esse direito.
Muito menos antes de explicar que interesses podem justificar que um clube, em tal estado de exaustão financeira, decida contratar um contentor de brasileiros trôpegos e, em maioria, impróprios para a função.
O dr. Nunes dos Santos, antigo e saudoso dirigente sportinguista, figura sempre muito respeitada e considerada em A BOLA, tinha, para estes casos, uma expressão inolvidável: «Gente que não tem moral nem para estar calada.»
Vítor Serpa in "A BOLA" de hoje, 19 de Setembro de 2008
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