Di Pace: «Sempre amei o Belenenses»

RECORD – Ao fim de 20 anos ausente, como tem sido recebido pelas pessoas?
DI PACE – Sinceramente, não esperava tanto afecto. É surpreendente que as pessoas me tratem de forma tão carinhosa, mesmo considerando que sempre amei o Belenenses.

RECORD – É o reconhecimento pelo jogador genial que foi…
DI PACE – Aos 77 anos, sinto uma felicidade imensa pela memória que deixei em Portugal e sobretudo entre os adeptos do Belenenses. As pessoas reconhecem-me, falam comigo, abraçam-me e mesmo aqueles que nunca me viram jogar fazem questão de expressar um carinho ao qual não estou habituado. Não mereço tanto! Um bocadinho ainda vá lá, mas assim tanto é um exagero!

RECORD – Quais são as primeiras impressões de Lisboa e do Restelo?
DI PACE – Lisboa é uma cidade fantástica, bonita como sempre. É um sítio onde, passados estes anos, me sinto em casa. Quanto ao Estádio, está cada vez mais lindo. É um dos mais bonitos que conheço.

RECORD – Como explica que apenas seis anos tenham sido suficientes para esta ligação tão forte?
DI PACE – Foi a intensidade das coisas. Nesse período, o Belenenses tinha uma grande equipa, cheia de jogadores extraordinários; um conjunto que lutou sempre pelos primeiros lugares, praticando futebol de altíssimo nível. A amizade entre nós era muito sólida e a relação estabelecida com os adeptos era fantástica.

RECORD – A nível pessoal, marca uma época no futebol português…
DI PACE – Digo-lhe sinceramente que não esperava esse reconhecimento exterior, essa recordação dos adeptos. Eu fui só um bom jogador integrado numa grande equipa. Por vezes fico até emocionado com as abordagens que me fazem.

RECORD – Lembra-se de como veio parar a Portugal?
DI PACE – Naquela altura jogava no Universidade do Chile, onde fui treinado por Alejandro Scopelli. Quando terminei o contrato, em 1953, ele chegou ao pé de mim e fez a pergunta que mudou a minha vida: "Queres ir jogar para Portugal?" Sabia lá onde ficava Portugal! Mas respondi que sim. Quando cheguei, o treinador era o Fernando Vaz e aproveitei as primeiras semanas para me ambientar.


RECORD – Foi uma história de amor à primeira vista?
DI PACE – Exacto, toda uma história de paixões: pelo País, pela cidade, pelo Belenenses e por aquela que foi a mulher da minha vida, mãe dos meus filhos, minha esposa... É uma felicidade ser casado com uma portuguesa. Digo mais: pode haver mulheres iguais à minha, mas melhores é impossível. De resto, costumo dizer, na brincadeira, que as mulheres portuguesas são como as castanhas: quentes e boas.

RECORD – No Belenenses teve também o treinador que mais o marcou…
DI PACE – ...Fernando Riera, treinador e homem extraordinário. Não o vejo desde 1971. Lembro-me imenso dele, mas nem sei se ainda é vivo…

RECORD – Riera esteve em Portugal há cerca de um ano, por altura da festa de despedida do Estádio da Luz…
DI PACE – Que felicidade! Se eu tenho 77 anos, ele estará com 82 ou 83. É um grande senhor do futebol mundial, a quem o futebol português deve grande parte da transformação registada em meados dos anos 50.

RECORD – Quais as recordações mais fortes dessas equipas do Belenenses?
DI PACE – A primeira recordação remete para a felicidade que enquadra esses tempos. Depois, lembro-me dos meus companheiros ao longo de seis anos, alguns deles já falecidos. Prefiro não falar em nomes para não ferir susceptibilidades.

RECORD – Há um ao qual não pode fugir: Matateu. Os dois são expoentes de uma época e duas das maiores figuras da história do Belenenses…
DI PACE – Matateu foi único: um fenómeno e à escala mundial. Era intuitivo a movimentar-se e uma delícia a rematar. Depois, era um amigo da paródia, com quem me dava na perfeição também fora do campo.

RECORD – Ele costumava dizer que jogavam de olhos fechados. Não estava a exagerar?
DI PACE – Não, não exagerava. Havia grande cumplicidade entre nós; porque nos entendíamos futebolisticamente e pelas características de cada um. Eu gostava de ter a bola, de a esconder, de arranjar espaço; ele observava, desmarcava-se para o sítio certo e, assim que encontrava espaço para rematar, nem queiram saber...

RECORD – Ele contava a história de outro modo: que corria para um lado qualquer e que, mesmo sem se preocupar, a bola lhe aparecia à frente…
DI PACE – Era ele a ser simpático!

RECORD – Guarda memória de outros jogadores do seu tempo?
DI PACE – Sim, de muitos: Travaços, Germano, Carlos Gomes, Juca, Barrigana, Pedroto, Hernâni, Rogério de Carvalho, José Águas, Faia, Ângelo, Caiado, Francisco Calado… Estou a citá-los de memória. Mas os do Belenenses também estavam entre os melhores – Matateu, Vicente, José Pereira, Carlos Silva, Raul Figueiredo, Moreira... O pior que me aconteceu foi ser quarto no campeonato…

RECORD – Sendo tão querido da gente, casado com uma portuguesa, por que motivo saiu do Belenenses?
DI PACE – Lesionei-me num tornozelo e, apesar de ter recuperado, não conseguia movimentar-me da mesma forma. E, como já não era o mesmo, decidi reformar-me.

RECORD – Mas não jogou mais?
DI PACE – Antes de regressar a Mar del Plata, em 1958, o Lusitano de Évora fez-me uma proposta. Recusei porque já tinha tudo organizado para voltar a casa e nunca seria capaz de defrontar o Belenenses. Assim, voltei à Argentina, onde comecei a trabalhar no campo – tenho uma herdade com 230 hectares. Ainda joguei no campeonato local e fui campeão em 1960.

RECORD – Como tem acompanhado o futebol português desde então?
DI PACE – Nos anos imediatamente a seguir, pelo contacto mantido com amigos portugueses, e a partir de certa altura porque vejo muita coisa na televisão – os últimos jogos que vi foram os do FC Porto com o Corunha. Mas deixei de ir aos estádios: o espectáculo já não vale a pena...

Autor: RUI DIAS - Record
Sábado, 8 Maio de 2004 -

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