O pai de Pepe mercanciava hortaliça de porta em porta numa carrocinha, a mãe vendia fruta no velho mercado de Belém, destruído em holocausto à Exposição do Mundo Português — a família vivia assim numa pobreza cortante, só atenuada quando o filho começou a ganhar algum (secreto) dinheiro no futebol e o ordenado de operário no Arsenal da Marinha. Para almoço de gente em paupérie, numa altura em que o País continuava mergulhado em crise profunda, sopa havia e pouco mais. Luxo era juntar-lhe um enchido. Foi o que se fez naquele dia trágico. À mesa comeram-se os legumes apenas na malga, o chouriço foi posto carinhosamente, pela mãe, na lancheira de Pepe para que merendasse no trabalho. Deu uma lasca a uma gata e ela morreu. Ele faleceria algumas horas depois. Em O Século, Tomé Vieira conta assim os primeiros sinais da tragédia: «Às 10.30 Pepe sai do torno e vai buscar a bucha. Meia hora depois sentiu-se mal. Ainda ironizou — ‹há quinze dias que tomei o purgante e só agora é que está fazendo efeito.›» Flamínio Azevedo, no Diário da Manhã, desvenda as horas amargas, a angústia do morbo, a vida a desfazer-se, no entardecer do dia triste — as palavras de Mendes Belo, médico do Hospital da Marinha: «Impressionou-me com a sua modéstia, vinha de fato de ganga e boina e quando lhe perguntei do que sofria queixou-se de violentas dores de barriga. Daí por duas horas apareceram sintomas de mais gravidade, aquilo foi vertiginoso: algidez, hemorragias, colapsos, reacções deficientes às excitações exteriores, Pepe a queixar-se de que tinha vontade de vomitar e não podia... O pulso desaparecera e duas transfusões de sangue não deram qualquer resultado...»
- este post foi publicado originalmente em 26/01/2008
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