Um craque que marcava golos de toda a maneira e feitio, um brasileiro vivaço e amante da boa vida, segundo os seus admiradores; um bêbado incorrigível que não resistia a uma cara bonita e que foi capaz de fazer 12 filhos a mães diferentes, um bazófio e um ébrio sem escrúpulos, capaz de ceifar a vida a inocentes ao volante das «máquinas» com que gostava de ludibriar a polícia -- no retrato feito pelos seus detractores.
Brilhou em Portugal nos anos 60/70 com a camisola do Guimarães e do FC Porto, conseguindo jogar até aos 40, embora nos registos federativos constasse menos cinco.
Era motorista de um familiar de Carlos Alberto Silva no Recife, mas voltou a Portugal para se penitenciar e conquistar um amor perdido. Uma tragicomédia chamada Djalma.
A história da vida de Djalma Nascimento Freitas mais parece o roteiro de um filme de série B. Uma tragicomédia, mas a preto e branco, porque só os quarentões guardam ainda na memória este futebolista brasileiro que nos anos 60 foi não só o terror dos guarda-redes, mas também um misto de D.Juan e de Totó.
Se os jogadores de futebol ainda hoje gozam de má fama, principalmente junto dos mais pudicos, a Djalma tem de ser feita justiça e reconhecida uma boa fatia dessa herança.
Ter 12 filhos, sete dos quais em Portugal, não era nada de singular na altura, se se desprezar o facto de serem todos de mães diferentes.
Ter tido tantos acidentes de automóvel que as seguradoras fugiam só ao ouvir o seu nome é menos comum, mas ainda vai acontecendo, se não forem tomados em conta os três óbitos dos que não ficaram cá para contar as cenas da fuga e da prisão que se seguiu ao atropelamento.
O alcoolómetro estava então muito longe de ser inventado, para sorte de Djalma, que, após 18 dias de coma num hospital, a primeira coisa que fez mal acordou foi fugir para o Tamariz, uma casa da noite portuense onde era rei e senhor e que reencontrou ao fim de quase duas décadas, quando recentemente decidiu abandonar o emprego no Brasil de motorista de um médico, compadre do ex-treinador do FC Porto Carlos Alberto Silva.
Djalma chegou a Portugal em Junho de 1965, contratado ao Sport Clube do Recife pelo Guimarães, que tinha vendido o seu compatriota Lua a um clube austríaco. Tinha 27 anos, mas o presidente de então do Vitória -- que identifica como «um primo de Pimenta Machado» -- achou por bem retirar-lhe cinco e, não fosse a coisa ser descoberta, apreendeu-lhe o único meio de identificação de que era portador, a carta de condução, decisão que só viria a atrapalhar ainda mais a sua difícil relação com a polícia de trânsito.
«Dei-lhe tantos pontapés... e depois corri atrás do árbitro»
Jogou um ano em Guimarães e revelou-se um avançado de eleição, marcando inúmeros golos, o que lhe valeu a disputa do prémio de melhor marcador com Eusébio. «Não fui o melhor artilheiro porque peguei seis jogos de castigo», explicou Djalma ao PÚBLICO.
Foi o resultado de uma das muitas histórias que também protagonizou no relvado e que tinham pelo menos o mérito de revelar o seu comportamento uniforme dentro e fora do campo.
O episódio passou-se num jogo com o Salgueiros: um adversário simulou ter sido agredido, atirando-se para o chão, e o árbitro deu ordem de expulsão a Djalma, que perdeu a cabeça.
«Dei-lhe tantos pontapés... e depois corri atrás do árbitro.
Eu não tinha feito nada; quando eu fazia ninguém via», assevera o brasileiro.
Em Guimarães começou a ganhar fama de conquistador inveterado.
Um dia fugiu do estágio para ir ter com uma namorada e, ao passar junto ao Estádio do Sporting de Braga, atropelou um homem de etnia cigana.
Fugiu no Austin que lhe tinha sido oferecido por um dirigente do Guimarães. «Ele ficou avariado da cabeça e eu com medo dele. Por isso, todos os meses lhe mandava dois escudos através de um amigo.
Fui julgado, mas acabaram por esconder tudo».
No seu currículo consta uma série infindável de acidentes ao volante dos melhores carros da época, entre os quais um Porsche e um Mercedes.
Alguns com contornos trágico-humorísticos, como quando entrou com o carro pela montra de um café. Como nunca recuperou a carta de condução tinha de usar de alguns subterfúgios para escapar ao controlo policial.
A Rotunda da Boavista, no Porto, era um local de passagem perigosa, por ali estarem sistematicamente montadas operações «stop».
«Normalmente pedia à menina que seguia ao meu lado para meter o braço de fora do vidro e eu apitava como se seguisse para o hospital. Mas depois alguns polícias já me telefonavam para o estágio ou para o Lar dos Jogadores a avisar quando eu não devia passar na Rotunda», explica, para logo criticar a menor habilidade do seu colega de equipa Malagueta, que «chegou a ir preso por não ter carta de condução».
As garrafas de Mateus Rosé
Mais um acidente em Guimarães convenceu os responsáveis do Vitória a transferi-lo para outras paragens.
José Maria Pedroto, que tinha deixado o Varzim para ir para as Antas, foi falar com ele e Djalma assinou pelo FC Porto, que, a exemplo do que acontece hoje, pagou com a cedência dos passes de três ou quatro jogadores.
Djalma assinou um contrato de três anos, passando a ser um dos jogadores mais bem pagos do futebol português. Na primeira época recebeu 60 contos, 70 na seguinte e 80 na última.
Isto sem contar com os prémios particulares que na altura era hábito nas Antas oferecer aos marcadores do primeiro golo de cada jogo. «Ganhei muitas caixas de Mateus Rosé (bebia logo depois do jogo...) e 12 televisões».
Tinha 32 anos, mas apenas 27 nos registos federativos. Jogou nos portistas entre 1966 e 1969, foi sempre um dos melhores marcadores da equipa e do Nacional e ajudou a vencer a Taça de Portugal de 1968 (bateu o Setúbal na final, depois de ter eliminado o Benfica).
Ainda hoje considera como uma das maiores mágoas da sua vida a perda do campeonato de 1969.
A poucas jornadas do fim, o FC Porto seguia isolado no primeiro lugar, acabando por ser ultrapassado pelo Benfica depois de ter perdido dois jogos nas Antas, frente à Académica de Coimbra e ao União de Tomar.
«Assinaram um decreto contra o Pedroto, para que nunca mais pudesse ser treinador do FC Porto. Diziam que ele tinha entregue o campeonato, ao jogar sem alguns dos melhores jogadores, como o Matraca, o Pinto e o Américo».
Telefone directo para os balneários
Djalma era já então o alvo preferido dos adeptos e dos jogadores adversários, que não lhe perdoavam o manancial de truques ilegais que fazia gala em utilizar dentro do campo.
«Cospia-lhes na cara, chamava-lhes filhos da puta e eles reagiam e eram expulsos», reconhece hoje o brasileiro.
Criada a fama de «sarrafeiro» e de «papagaio», começou a pagar mesmo quando estava inocente, facto que o jornal do clube, o extinto «O Porto», não se cansou de bradar. «Djalma: um caso de fama sem proveito» e «Quando terminará a perseguição a Djalma?» foram alguns dos títulos de artigos em que se criticava a «disforme caricatura que lhe traçaram certos `generais' desenhadores de reputação», uma crítica bem explícita à imprensa lisboeta.
Estávamos em finais de 1967 e a verdade é que, poucos meses depois, Alfredo Farinha escrevia em «A Bola» que «Djalma foi punido por tudo e por nada (estará proibido de se aproximar até mais de dois ou três metros do adversário?)», enquanto Mário Zambujal opinava no «Diário de Lisboa» sobre o «excessivo rigor contra Djalma, cuja má fama o terá tornado vítima de alguns castigos».
No futebol, a verdade nem sempre é como o azeite, mas por vezes vem de onde menos se espera e, no dia 17 de Agosto de 1968, podia ler-se no «O Porto», a propósito de um inquérito acerca das férias dos futebolistas:
«[Djalma] revelou-nos confidências que não podemos fazer uso delas. Não temos o direito de abusar da sua franqueza».
Mais à frente, Djalma lá acaba por conseguir dizer: «O dinheiro que mais gastei foi em cervejas». Nada de mais num jornal que em 21 de Dezembro do mesmo ano fazia gala em anunciar uma abertura para com os jornalistas que hoje poucos acreditariam ter alguma vez sido possível nas Antas: um telefone com linha directa das cabinas de imprensa para os balneários dos jogadores...
Atropelamento, fuga e prisão
Findo o contrato com o FC Porto, Djalma mudou-se então para o Belenenses, que tinha marcada para Junho uma das então habituais digressões a Angola.
Mas Djalma não resistiu aos apelos de uma das namoradas e conseguiu convencer o médico Camacho Vieira de que estava lesionado. Foi desconvocado.
No domingo seguinte, atropelou e matou três pessoas. «Já tinha começado a beber na sexta-feira e no domingo fui a Santa Apolónia buscar uma encomenda que chegava todas as semanas do Norte (eu não gostava do vinho de Lisboa...).
A `Isabel' [nome adaptado] foi comigo no Alfa Romeo. No caminho, perto da Ponte Salazar, surgiu um camião com os máximos ligados. Deixei de ver e atropelei uma senhora, a filha e o namorado.
Ouvi gritos e fugi, mas o motor do carro gripou mais à frente. Pedimos boleia e parou um carro. Entramos e vimos que era o comandante da polícia. Deixou-nos em casa, na Reboleira. Não demorou meia hora a virem buscar-me. Estava de pijama. Levaram-me para a esquadra, mas eu estava tão bêbado que me deitaram numa cama. Adormeci logo e só acordei ao outro dia. Levaram-me a fazer o reconhecimento do acidente e apareceu lá o marido da falecida».
Um director do Belenenses quis pagar a fiança, mas Djalma não deixou.
Foi condenado a 15 meses de prisão, mas a acusação recorreu e a pena foi aumentada para dois anos, castigo que os regulamentos impediam de continuar a jogar futebol.
Por intervenção de alguns governantes adeptos do Belenenses, como foi o caso de Américo Tomás, e após novo recurso, retiraram-lhe 15 dias de prisão.
Ficou preso no Montijo, mas ao fim de sete meses foi transferido para Sintra. «O Meirim era o treinador do Belenenses e mandou que me colocassem um colchão de espuma na prisão. Fiquei na ala B; a A era para os comunistas».
Saiu em 1970 e seguiu directamente para o aeroporto para ir jogar às Antas.
No Porto, a primeira coisa que fez foi ir ao barbeiro. «Fui ao Albino. Quando eu jogava no FC Porto ele ia todos os domingos, às 11 horas, pentear-me ao Lar do FC Porto, onde eu vivia.
Era para eu entrar bonito em campo».
Como soube que afinal não ia jogar, foi recordar os velhos tempos ao Tamariz.
Fuga do hospital para o Tamariz
Estava então com 37 anos (reais) e continuava a pagar as diabruras que levou um dia o «Jornal de Notícias» a fazer-lhe um perfil que tinha por título «Garganta Funda», um paralelismo com o filme mítico da pornografia que não precisava de grandes explicações e que não agradou a Zé Maria Pedroto.
O Belenenses acabou por o emprestar primeiro ao Oriental e, na época seguinte, ao Marinhense, para finalmente prescindir dos seus serviços.
Litos Gomes de Almeida encontrou-o um dia em Lisboa e levou-o para Espinho.
Foi campeão da II Divisão. «Foi no ano da Revolução, tinha 40 anos, o treinador era o Joaquim Andrade, que só confiava em mim».
Voltava a ter sucesso desportivo, mas os problemas fora do campo continuavam. Um dia, depois de ter ido almoçar à Granja com uma das filhas, apanhou boleia do amigo Vidigal.
Seguiam para um encontro no Café Velasquez, no Porto, e foram abalroados por um camião.
«Caí morto, morri». Esteve cerca de 12 horas a ser operado e ficou 18 dias em coma no Hospital de Santo António.
Perdeu dois dedos da mão esquerda e a perna direita, que ainda hoje tem uma cicatriz que faria inveja a Frankenstein, teve de ser reconstruída e ficou mais curta alguns centímetros.
Quando acordou só quis saber onde é que estava. Esperou pelas 23 horas e fugiu de pijama.
Os empregados do Tamariz não queriam acreditar quando o viram entrar e correram para o telefone.
Uma hora depois chegou o médico que o operara. «Levaram-me outra vez para o hospital e puseram-me um cadeado nas mãos».
Acabaria por ir viver para casa de uns amigos em Espinho e ainda voltou aos campos de futebol. Até que um médico o avisou que à primeira pancada mais certeira teria de amputar a perna.
O FC Porto fez-lhe então uma festa de homenagem em Riopele, que rendeu «cento e poucos contos».
Entregaram-lhe apenas uma pequena parte e mandaram-lhe o restante para o Brasil, onde nos últimos tempos foi motorista de um compadre do antigo treinador do FC Porto Carlos Alberto Silva.
Doze filhos de mães diferentes. Bem-vindo entre as mulheres
-- Apresento-lhe aqui a minha filha, chama-se `Adelaide' [nome adaptado], como a mãe.
-- Não, a minha mãe não se chama assim.
-- Otília?-- Não.-- Fernanda?-- Também não.
-- [Já atrapalhado] Então diz lá como é que é...
Esta passagem de uma conversa entre Djalma e a filha que não via desde os dois anos (hoje é uma advogada com 28 anos) aconteceu no Estádio das Antas, poucos minutos antes do início do FC Porto-Aalborg.
`Adelaide' tinha lido nos jornais que aquele que lhe tinham dito ser o seu pai estava em Portugal e foi procurá-lo onde acertadamente considerou ter mais probabilidades de o encontrar.
Isolado, o pequeno extracto da conversa indicia o desprendimento com que o brasileiro encarou, pelo menos no passado, os laços familiares e de sangue. Mas a verdade é que, aos 57 anos, Djalma quer recuperar quanto possível o tempo perdido e este regresso ao país que há 20 anos o tornou célebre tem muito de penitência.
Com `Adelaide' até já foi evidente a tendência em se transformar num «pai-galinha»...
«Deixei sete filhos em Portugal, um em cada cidade e todos de mulheres diferentes.
No Brasil tenho mais cinco, também de mães diferentes. Quero conhecê-los a todos», assevera, antes de confidenciar ao PÚBLICO a vontade de retomar a relação que teve no passado com a lisboeta Isabel [nome fictício], a quem fez uma filha que hoje tem 26 anos.
E já tem uma oferta de emprego numa fábrica em Moreira de Cónegos para o caso de `Isabel' corresponder aos amores de um Djalma que recompôs recentemente a dentadura e até escondeu os cabelos brancos com tinta preta.
Quando em Setembro desembarcou em Lisboa, depois de ter viajado a convite de Manuel de Almeida e Orlando Alhinho, respectivamente presidente e vice-presidente do Moreirense, com quem havia travado conhecimento no Recife, Djalma aproveitou o facto de o empresário de futebol Robério Lopes o ter apresentado ao futebolista Jaime Pacheco para lhe pedir uma boleia até ao Montijo.
Primeiro procurou o amigo Ângelo, o carcereiro da prisão de Sintra que lhe tinha facilitado a vida na cadeia, ao ponto de as visitas diárias e prolongadas de `Isabel' («Ia levar-me o café, o almoço, o jantar e, por vezes, acabava por dormir lá) terem redundado numa gravidez. Mas Ângelo tinha falecido e o brasileiro foi então à procura de `Isabel'.
Depois de um encontro ocasional com Matine, Eusébio e Sousa Cintra («Foi logo uma garrafa de whisky»), bateu-lhe à porta.
Não a reconheceu à primeira. «Não entendo, tinha um cabelo louro tão bonito e agora pintou-o de preto», explica, sem talvez ter percebido a maior probabilidade de ter acontecido precisamente o contrário.
Jantaram juntos, mais a filha, mas a reaproximação ficou de ser negociada em novo encontro.As relações complicadas de Djalma com o sexo oposto começaram há duas décadas, quando decidiu aceitar o convite do Guimarães para ser um dos primeiros brasileiros a jogar em Portugal.
Foi detido pela polícia já dentro do avião por a legislação brasileira não permitir que se abandonasse uma mulher com um filho (tinha um ano). Resolveu o problema com a oferta de uma casa, divorciou-se em 1991 e hoje a ex-mulher é chefe de uma loja de um seu amigo.
A cena quase se repetiu na segunda viagem transatlântica: nos últimos tempos vivia com uma brasileira de 27 anos, que deixara grávida aos 16.
«Tive de vir sem ela saber. Aquilo é fogo e eu tinha medo que ela, se soubesse, me deitasse água quente no ouvido enquanto eu estivesse a dormir. É um costume antigo naquela região...».
Djalma tinha e ainda tem uma facilidade bem brasileira para se relacionar com toda a gente, fazendo uso de um humor incisivo e quase sempre «picante».
Ao ponto de, quando jogava em Guimarães, ter arranjado alguém que ele mesmo rotula de «mãe adoptiva», cuja amizade chegava ao ponto de servir para lhe «arranjar muitas das namoradas». «Para onde eu ia ela ia comigo».
Tanta pândega não lhe permitiu poupar nada do muito dinheiro que ganhou. «Quando não se tem [leva dois dedos à testa]... Mas não estou arrependido. Gozei a vida».
Autor: Bruno Prata/Público