(...) Mas há outra pessoa na minha família que os leitores conhecem pior, pois faleceu há muitos anos, mas que muita gente ainda venera: o meu avô Virgílio Paula.
Era médico com consultório na Calçada da Ajuda, paredes-meias com o Palácio de Belém, e, sempre que escrevo sobre ele, recebo cartas de antigos doentes (que na altura eram crianças e hoje têm uma idade respeitável).
Acerca de uma referência que lhe fiz há meses neste espaço, o leitor Alípio Alves Rodrigues enviou-me uma carta comovente de que transcrevo o seguinte:
«Há cerca de oitenta anos fiquei a dever a vida ao médico Virgílio Paula, que acompanharia a minha infância. Nasci em 1923, em Oliveiras de Baixo, na Serra de Monsanto.
Vivíamos de bem com a natureza e com a vida que Deus nos dera. Em tal ambiente campesino, uma ou outra constipação, ou mal menor, eram curados com chá de flor de borragem, de cidreira ou de flor de sabugueiro.
Porém, no ano de 1927, minha mãe teve de carregar com o pesado garoto de quatro anos que, subitamente, se sentira com profunda dificuldade respiratória. Tomou o caminho do consultório médico mais próximo, que era na Calçada da Ajuda.
Era de tal modo aflitiva a situação respiratória do garoto que o dr. Virgílio Paula interrompeu a consulta que estava a dar para vir à sala de espera indagar quem era o rapaz que acabara de tossir. E imediatamente despachou minha mãe com o doente para o Hospital D. Estefânia, onde fiquei internado durante alguns dias em regime de isolamento.
A tal doença era o garrotilho, a que tecnicamente chamam difteria e que, em poucas horas, pode causar irreparável dano. Outros danos menos graves haveriam de levar o dr. Virgílio Paula a Oliveiras de Baixo, solicitado por um guarda-fiscal que, a desoras, o procurava aflitivamente em casa.
Quem haveria de dizer-me que, na base da história do Clube de Futebol ‘Os Belenenses’ – clube do meu coração e onde jogaria o Tónita, meu companheiro de carteira na escola –, estavam o dr. Virgílio Paula e sua esposa, que teriam um neto com tão importante obra na história do jornalismo português, fundador do SOL, que interessadamente leio desde o 1.º número?».
Agradeço ao leitor as amáveis palavras e a história que conta.
Uma história onde as nossas famílias se cruzam. E aproveito a ‘deixa’ para divulgar um outro episódio que me foi contado há vários anos por um leitor do Expresso, em circunstância semelhante.
Entre muitos outros afazeres profissionais (médico da Carris, do Air Liquide, da Presidência da República), o meu avô Virgílio era responsável clínico pela equipa de futebol do Belenenses.
Um dia, nos periódicos exames que realizava aos jogadores, concluiu que um célebre futebolista da altura, Mariano Amaro, estava tuberculoso.
Alarme no clube, exames e mais exames feitos no Centro de Medicina Desportiva – mas nada!
O raio X não acusava qualquer lesão. Dava-se o caso de Amaro namorar com uma rapariga que trabalhava no consultório médico do meu avô, sendo sua empregada. E logo se montou uma história: como o dr. Virgílio Paula provavelmente não aprovava o namoro da jovem com o futebolista, inventara aquela tuberculose para lhe destruir a carreira.
A história era tão plausível que passou por boa. O meu avô começou a ser olhado de soslaio no departamento médico do clube, suspeito de ter feito deliberadamente um diagnóstico errado para procurar afectar o famoso jogador.
Mariano Amaro voltou então a jogar sem quaisquer limitações e o caso esqueceu.
Até que um belo dia, a meio de um jogo, Amaro ajoelhou-se na relva e começou a bolsar sangue. Estava mesmo tuberculoso! As máquinas tinham-se enganado e quem acertara fora o Virgílio Paula!
Os que tinham duvidado da seriedade do seu diagnóstico tiveram então de lhe pedir desculpa. (...).
José António Saraiva, Política a Sério, "Sol"