Das Salésias ao Restelo... pelo futuro!
Dos 15 tostões do autocarro à sardinhada na superior Fonseca e Costa e a razão de tudo.
É dali, das Salésias, que, domingo, vai sair a Corrida dos 90 Anos do Belenenses.
Nasceu, em 2006, de uma ideia de António Fonseca e Costa: «Estávamos nas comemorações do 50º Aniversário do Estádio do Restelo – e eu propus em Conselho Geral corrida que fosse um compromisso entre o passado e o futuro e sobretudo uma forma de sensibilização para o estado de abandono das Salésias. Fez-se. Decidimos continuá-la até que as Salésias sejam devolvidas ao clube ou se tornem em algo mais digno, ao serviço da comunidade.
Parece que com esta vereação da Câmara Municipal volta a haver a esperança, vamos ver – pois custa muito olhar para toda esta degradação, lama, lixo, barracas...»
Antes do tiro, em operação de marketing a puxar ao sentimento, Fonseca e Costa fez questão de passar por lá com alguns históricos de Belém.
Januário Costa, dos melhores especialistas de 400 metros da década de 50, que logo largou em memória: «Ai como era o atletismo! Não tínhamos equipamentos, davam-nos umas alpergatas, de pano com sola fininha, calções que já tinham servido no futebol, camisolas às vezes com buracos. Nas Salésias calcei bicos pela primeira vez, feitos em sapateiros que atarraxavam pregos às solas.
Quando aparecia uma pedra na cinza –o prego entrava, furava-nos os pés.
Em 1953 fui campeão nacional de juniores – e por causa disso o Belenenses começou a dar-me três escudos por cada treino, fazia dois por semana, às terças e quintas, eram 15 tostões para o autocarro de Belém ao Alto do Carvalhão, mais 15 para o regresso. E mais nada.
Mas como nem sempre recebia, o meu pai punha-me os três escudos no bolso e dizia-me: leva, se não te pagarem, devolves. Era o que fazia, claro...»
Para Fonseca e Costa, a Corrida dos 90 Anos do Belenenses – deve ser mais do que uma corrida, espaço para a memória, memórias assim, cruzadas no tempo. «Para além desse traço de união entre o passado, o presente e o futuro, as Salésias e o Restelo, um espaço de unidade e partilha.
E é por isso que apelo a que toda a gente venha, quem não puder correr, caminha. E depois, na superior, vamos fazer uma sardinhada, uma churrascada, recordar, viver – mostrar o que o Belenenses foi e é.
Pode e deve vir gente que foi de outros clube, é óbvio. Temos a certeza de que a Rosa Mota vai estar, a Aurora Cunha só não estará porque, nesse dia, o FC Porto vai homenageá-la pelos 25 anos do seu título de campeã mundial de estrada, no intervalo do jogo com o Rio Ave...»
"Vicente, o golo ao FC Porto, Pelé e o vidro que o cegou
Golo histórico na primeira vez que jogou nas Salésias, cinco contos o seu maior ordenado
Vicente Lucas saiu do carro – e atirou, súbito, os olhos para o campo.
Para baliza ao fundo – contou: «Foi ali, naquela, que eu marquei o meu primeiro golo pelo Belenenses. Ao FC Porto.
No jogo da minha estreia oficial. Queriam chamar-me Matateu II, por causa do meu irmão, eu disse não, que era Vicente, Vicente fiquei.»
Uma velhinha passa - e grita-lhe: «Ai meu querido, o homem que não deixava Pelé jogar.» Há no sorriso de Vicente - um traço desarmante de timidez e um murmúrio: «É o que toda a gente diz, sempre, isso do Pelé.
A primeira vez foi no Estádio Nacional – e o Pelé ficou logo no meu bolso. Depois, foram mais quatro vezes.
Até que chegou aquele jogo do Mundial de 1966. Dizem que ele, mal me viu - ficou assustado. Não sei. Só sei que lhe disse: Joga o teu futebol, que eu vou jogar o meu! Não, não tinha nenhum segredo.
Com ele, fiz o que fiz com toda a gente: nada de porrada, só antecipação, eu nunca fui de bater...»Um ano depois, o drama. À beira do Estádio do Restelo: «O condutor de outro carro fez manobra perigosa, para não o apanhar bati num poste, o vidro do pára-brisas atingiu-me o olho direito, cegou-me. Tinha 30 anos, não mais pude voltar a jogar.» Organizaram-lhe festa de despedida – com a receita comprou dois andares, montou café-tabacaria.
O negócio fracassou, teve de vender os andares - passou a treinador. «O quê? Se não fosse o acidente, poderia estar agora rico?! Não! Naquela altura não se ganhava nada de especial, o meu maior ordenado no Belenenses foi cinco contos. Não havia contratos para o estrangeiro, o Salazar não deixava, nem ao Eusébio.
Como é a minha vida agora? Normal! Vivo da reforma – e desta paixão pelo Belenenses, que é até morrer. Só quando não posso é que não passo todos os dias pelo Restelo. E desejo muito que toda a gente que, como eu, tem o Belenenses no coração faça esta corrida...»
" Argentina de Matateu por causa de A BOLA
Filha está a escrever livro «íntimo» sobre o... «Terror dos Guarda-Redes»
Chama-se Argentina, Argentina Lucas. «O meu nome é o que é por causa de A BOLA, sabia?
Em 1954, o meu pai estava a jogar contra a Argentina – e ao intervalo foram dizer-lhe que eu tinha nascido. Ficou eufórico - e marcou um golo.
O jornalista brincou com ele: agora, até podia chamar Argentina à menina, ficava giro. Disse logo - que era mesmo isso, Argentina fiquei.»
O pai é Matateu, o mito do Belenenses – que explodiu nas Salésias, ainda. Foi o primeiro jogador de futebol do clube a ter automóvel - e, por ali, para além de se recordarem as lágrimas a soltarem-se por causa do golo do sportinguista Martins que, a quatro minutos do fim, tirou o título de campeão de 1954, deu-o ao Benfica, de Matateu se contaram outras coisas.
Que havia dias em que bebia 30 cervejas – e que nas Salésias, tinha escondida, na casa de banho, atrás da sanita, garrafinha que tinha de beber, sagrado, sempre, ao intervalo. Bebia e nunca nenhum treinador descobriu. «Era o seu doping!»
Outras revelações promete Argentina. «Estou a escrever a biografia do meu pai. As histórias mais profundas, mais íntimas, muito engraçadas, hilariantes até – que ninguém sabe. Ainda não tenho editora, o livro é para 2010, há tempo. Ah! E sabe que também fiz atletismo? Comecei aos 14 anos, os meus treinadores foram o Matos Fernandes e o Rui Mingas. Depois, a minha mãe e o seu segundo marido foram para Angola - e eu não continuei porque dizia que desporto só fazia no Belenenses. Era birra por amor à camisola. Também tinha andado no basquetebol, era lançadora de dardo e peso, para correr não dava muito, era um bocadinho gordinha...»